Como escolas de elite da cidade de SP lidam com racismo, homofobia e preconceito sofridos por alunos bolsistas

Projetos de bolsas de estudo abrem portas para educação de ponta, mas podem colocar alunos em situações de desigualdade a ponto de causar constrangimentos. No último dia 12, aluno bolsista do colégio Bandeirantes se suicidou após ser vítima de racismo e homofobia. Racismo, homofobia e preconceito em escolas de elite de São Paulo Se você está com ideações suicidas, se quer conversar com especialistas ou precisa de apoio emocional de forma sigilosa e anônima, entre em contato com o Centro de Valorização da Vida (CVV) pelo número 188. Funciona 24h por dia e é de graça. Algumas das escolas com as mensalidades mais caras na cidade de São Paulo, que variam entre R$ 3 mil e R$ 16 mil, oferecem bolsas de estudo a alunos de baixa renda e a estudantes negros. Dessa forma, os jovens selecionados pelas ações afirmativas têm a oportunidade de acessar um tipo de ensino que normalmente não teriam ao longo de suas formações. Se, por um lado, esse tipo de projeto abre portas para uma educação de ponta, de outro, pode levar o aluno bolsista a ser "jogado" numa realidade completamente diferente da sua, onde o "normal" é ser branco e rico — e ser algo diferente disso pode ser motivo para preconceitos e agressões. Quando a escola não está realmente preparada para receber esse tipo de diversidade, as consequências podem ser muitas. "Ao introduzir crianças e adolescentes nessas instituições sem o devido acompanhamento, estamos potencializando violências que fazem parte de suas vidas e que os colégios jamais poderiam ignorar. A entrada nesses ambientes, visto como um privilégio do qual se espera gratidão, costuma ser a reedição das humilhações diárias dessa população", apontou Vera Iaconelli, doutora em psicologia pela Universidade de São Paulo (USP), em artigo publicado na Folha de S. Paulo. Ainda assim, a adoção de políticas afirmativas por parte desses colégios é algo muito benéfico em diferentes níveis. Léo Bento, especialista em relações raciais e consultor de diversidade, equidade e inclusão da Inaperê, explica: "Garante acesso de pessoas que têm condições de atuar nesses espaços, pode reverberar numa mudança social não só sua, mas da sua família também. Se beneficia também quem vai conviver com os bolsistas por conta de uma ampliação da diversidade e a possibilidade de ver o mundo de forma diferente, de ter outras experiências que não sejam somente aquelas conhecidas por pessoas de classe média e classe média alta". (leia mais abaixo) Protesto em frente ao Colégio Bandeirantes, na Zona Sul de São Paulo Reprodução/Instagram Morte O episódio mais recente em escolas foi a precoce morte de um adolescente que cometeu suicídio no último dia 12 de agosto. Negro, gay e periférico, ele era aluno bolsista do Colégio Bandeirantes, um dos mais tradicionais da capital. "Perdemos para o bullying, para a homofobia e, principalmente, para o descaso do colégio", afirmou um familiar. A revista Piauí teve acesso a trocas de mensagens entre o jovem e a mãe ocorridas entre os dias 22 e 24 de maio deste ano: “Fizeram chacota de mim por eu ser gay”; “No prédio do elevador, o menino me deu um empurrão e gritou no meu ouvido”; “Fiquei de cabeça baixa por muito tempo. Não vim para o Band [Colégio Bandeirantes] para ficar escutando bosta de branquelo azedo metido a besta sobre minhas coisas e o que eu sou. Eles vão pagar. Não estou brincando", diziam algumas mensagens. Em outra ocasião, o menino escreveu: "Vontade de nunca mais pisar de novo. Me humilharam (na frente) da sala inteira. Eu não aguento mais. Eu fiquei trancado no banheiro por 50 minutos, chorando. Ficaram me humilhando". Uma semana após a morte do adolescente, estudantes organizaram um protesto em frente ao Colégio Bandeirantes. Alguns levaram cartazes com as frases: "A homofobia descoloriu mais uma vida", "Silêncio diante de racismo é cumplicidade" e "A sua negligência custou uma vida". Com um megafone, um dos manifestantes sugeriu uma reflexão: "Imagina se um grupo de alunos bolsistas fizesse bullying com um aluno pagante até ele cometer suicídio. Qual seria o posicionamento da escola? O que seria feito com esses alunos bolsistas? Eu vos garanto que, se isso tivesse acontecido, todos os alunos bolsistas teriam sido punidos, expulsos e, provavelmente, seriam julgados na vara criminal". Portaria do Colégio Bandeirantes em 2015 Letícia Macedo/G1 O que diz o Colégio Bandeirantes Ao g1, o Colégio Bandeirantes disse que não recebeu denúncias formais indicando que Pedro estava sendo vítima de bullying, "que é uma situação de conflito recorrente", apontou a instituição. "Em maio de 2024, foi relatada à orientação educacional uma situação pontual de provocação. Imediatamente, o aluno foi acolhido e recebeu todo o apoio necessário", afirmou o colégio, indicando que "a situação foi abordada com sensibilidade". "Como parte desse processo, organizamos rodas de conversa para que os alunos tivessem a oportunidade de expressar seus sentimentos e reflexões, promovendo um espaço de escuta ativ

Como escolas de elite da cidade de SP lidam com racismo, homofobia e preconceito sofridos por alunos bolsistas

Projetos de bolsas de estudo abrem portas para educação de ponta, mas podem colocar alunos em situações de desigualdade a ponto de causar constrangimentos. No último dia 12, aluno bolsista do colégio Bandeirantes se suicidou após ser vítima de racismo e homofobia. Racismo, homofobia e preconceito em escolas de elite de São Paulo Se você está com ideações suicidas, se quer conversar com especialistas ou precisa de apoio emocional de forma sigilosa e anônima, entre em contato com o Centro de Valorização da Vida (CVV) pelo número 188. Funciona 24h por dia e é de graça. Algumas das escolas com as mensalidades mais caras na cidade de São Paulo, que variam entre R$ 3 mil e R$ 16 mil, oferecem bolsas de estudo a alunos de baixa renda e a estudantes negros. Dessa forma, os jovens selecionados pelas ações afirmativas têm a oportunidade de acessar um tipo de ensino que normalmente não teriam ao longo de suas formações. Se, por um lado, esse tipo de projeto abre portas para uma educação de ponta, de outro, pode levar o aluno bolsista a ser "jogado" numa realidade completamente diferente da sua, onde o "normal" é ser branco e rico — e ser algo diferente disso pode ser motivo para preconceitos e agressões. Quando a escola não está realmente preparada para receber esse tipo de diversidade, as consequências podem ser muitas. "Ao introduzir crianças e adolescentes nessas instituições sem o devido acompanhamento, estamos potencializando violências que fazem parte de suas vidas e que os colégios jamais poderiam ignorar. A entrada nesses ambientes, visto como um privilégio do qual se espera gratidão, costuma ser a reedição das humilhações diárias dessa população", apontou Vera Iaconelli, doutora em psicologia pela Universidade de São Paulo (USP), em artigo publicado na Folha de S. Paulo. Ainda assim, a adoção de políticas afirmativas por parte desses colégios é algo muito benéfico em diferentes níveis. Léo Bento, especialista em relações raciais e consultor de diversidade, equidade e inclusão da Inaperê, explica: "Garante acesso de pessoas que têm condições de atuar nesses espaços, pode reverberar numa mudança social não só sua, mas da sua família também. Se beneficia também quem vai conviver com os bolsistas por conta de uma ampliação da diversidade e a possibilidade de ver o mundo de forma diferente, de ter outras experiências que não sejam somente aquelas conhecidas por pessoas de classe média e classe média alta". (leia mais abaixo) Protesto em frente ao Colégio Bandeirantes, na Zona Sul de São Paulo Reprodução/Instagram Morte O episódio mais recente em escolas foi a precoce morte de um adolescente que cometeu suicídio no último dia 12 de agosto. Negro, gay e periférico, ele era aluno bolsista do Colégio Bandeirantes, um dos mais tradicionais da capital. "Perdemos para o bullying, para a homofobia e, principalmente, para o descaso do colégio", afirmou um familiar. A revista Piauí teve acesso a trocas de mensagens entre o jovem e a mãe ocorridas entre os dias 22 e 24 de maio deste ano: “Fizeram chacota de mim por eu ser gay”; “No prédio do elevador, o menino me deu um empurrão e gritou no meu ouvido”; “Fiquei de cabeça baixa por muito tempo. Não vim para o Band [Colégio Bandeirantes] para ficar escutando bosta de branquelo azedo metido a besta sobre minhas coisas e o que eu sou. Eles vão pagar. Não estou brincando", diziam algumas mensagens. Em outra ocasião, o menino escreveu: "Vontade de nunca mais pisar de novo. Me humilharam (na frente) da sala inteira. Eu não aguento mais. Eu fiquei trancado no banheiro por 50 minutos, chorando. Ficaram me humilhando". Uma semana após a morte do adolescente, estudantes organizaram um protesto em frente ao Colégio Bandeirantes. Alguns levaram cartazes com as frases: "A homofobia descoloriu mais uma vida", "Silêncio diante de racismo é cumplicidade" e "A sua negligência custou uma vida". Com um megafone, um dos manifestantes sugeriu uma reflexão: "Imagina se um grupo de alunos bolsistas fizesse bullying com um aluno pagante até ele cometer suicídio. Qual seria o posicionamento da escola? O que seria feito com esses alunos bolsistas? Eu vos garanto que, se isso tivesse acontecido, todos os alunos bolsistas teriam sido punidos, expulsos e, provavelmente, seriam julgados na vara criminal". Portaria do Colégio Bandeirantes em 2015 Letícia Macedo/G1 O que diz o Colégio Bandeirantes Ao g1, o Colégio Bandeirantes disse que não recebeu denúncias formais indicando que Pedro estava sendo vítima de bullying, "que é uma situação de conflito recorrente", apontou a instituição. "Em maio de 2024, foi relatada à orientação educacional uma situação pontual de provocação. Imediatamente, o aluno foi acolhido e recebeu todo o apoio necessário", afirmou o colégio, indicando que "a situação foi abordada com sensibilidade". "Como parte desse processo, organizamos rodas de conversa para que os alunos tivessem a oportunidade de expressar seus sentimentos e reflexões, promovendo um espaço de escuta ativa e acolhimento. Além disso, intensificamos as ações de conscientização em toda a comunidade escolar, reforçando nossos valores de respeito e inclusão. Desde então, mantivemos um acompanhamento contínuo, garantindo que todos os alunos se sintam seguros e apoiados", diz a nota do colégio. "Nossa prioridade é garantir um ambiente onde todos os alunos se sintam seguros e respeitados. Para isso, contamos com protocolos claros para identificar e abordar qualquer comportamento que possa comprometer o bem-estar dos estudantes. Seguimos monitorando o ambiente escolar, e nossa equipe está sempre disponível para ouvir e agir em qualquer situação que possa surgir". Questionado se existem punições previstas em caso de bullying, racismo e homofobia, por exemplo, o Colégio Bandeirantes disse que trabalha com "protocolos bem definidos que incluem desde a investigação minuciosa dos incidentes até a aplicação de medidas disciplinares, que podem variar de advertências formais a suspensões, dependendo da gravidade do caso". No entanto, a instituição não afirmou se alguma medida foi adotada em relação aos alunos envolvidos no caso de Pedro Henrique. "Mais do que punir, nosso foco é educar e transformar", pontuou o colégio. Como colégios de elite devem lidar com a diversidade Esse tipo de problema não é exclusivo do Colégio Bandeirantes. Outras instituições da capital também receberam denúncias de racismo. Neste ano, uma das filhas da atriz Samara Felippo foi alvo na escola Vera Cruz; em 2022, pais de alunos disseram que o diretor do Colégio São Domingos era omisso diante de casos de racismo; no mesmo ano, o Colégio Porto Seguro foi acusado de separar fisicamente alunos bolsistas e pagantes (veja mais detalhes abaixo). Mestre em História da Educação Léo Bento aponta que as escolas de elite que oferecem bolsas, sobretudo com recorte racial, devem implementar, no mínimo, quatro medidas (veja abaixo). "Quando a gente tem essa ampliação da diversidade, é necessário que a escola faça um dever de casa anterior às bolsas, anterior a essa ampliação da diversidade só para cumprir uma demanda de marketing positivo", explicou. 1) Letramento racial "As escolas precisam se preparar com letramento racial para toda a comunidade. É pensar nos pilares dessa educação antirracista, que é a gestão. Ela precisa ter entendimento de como a nossa sociedade se organiza racialmente e como que essa organização racial impacta numa perspectiva social", afirma Léo. "Os educadores precisam ter dimensão de como atuar com essas crianças, trazendo nos seus planejamentos uma perspectiva de educação que seja diversa, levando em consideração o grosso da população brasileira, que não sejam aulas com uma perspectiva eurocentrada". "O racismo recreativo precisa ser combatido entre os estudantes e também com as famílias. O letramento racial também precisa ser feito com as famílias, para que as famílias possam ter dimensão de que a gente, no Brasil, por conta do mito da democracia racial e de relações amenas que foram sendo criadas e introduzidas na nossa mentalidade, acaba naturalizando determinadas situações como sociedade". 2) Criação de uma comissão antirracista "É importante que as escolas consigam identificar pessoas que estudem e estejam qualificadas para discutir ou até mesmo para aprender sobre relações raciais e criar uma comissão antirracista que englobe familiares, professores e gestão para pensar como essa escola pode ter discussões sobre relação raciais e não fazer com que situações de discriminação se tornem algo corriqueiro". 3) Política de contratação afirmativa "As escolas também elas precisam criar políticas de contratações afirmativas justamente para que as crianças possam se ver representadas, e as crianças brancas possam ver que pessoas negras também podem estar no lugar como professor, em outros lugares que não sejam somente os 'clássicos', como as pessoas negras na cantina, na segurança, na limpeza", exemplificou Léo. "É de suma importância também que as escolas assumam um papel de trazer para cargos de gestão, de tomada de decisão, pessoas negras, justamente para que essas decisões elas não sejam majoritariamente pensadas por pessoas que têm o mesmo olhar social para determinadas situações. Um gestor negro, uma gestora negra, vai ter um olhar diferenciado na hora de tomar decisão sobre determinadas situações". 4) Análise de currículo "Outra coisa que precisa ser pensada por essas escolas é a análise de currículo. É pensar num currículo que traga outras dimensões, levando em consideração a diversidade do povo brasileiro, para poder dar conta da implementação, inclusive, das leis 10.639 e 11.645, que garantem o ensino da história do negro e do indígena e de África de forma positiva em sala de aula". "É levar em consideração as tecnologias africanas, que muitas das vezes não são colocadas na sala de aula, levar em consideração cientistas negros e negras, é trazer um olhar sensível para positivar a diversidade na escola". A bolsa como ponte Quando oferecidas com a seriedade devida, as políticas de bolsas de estudo tendem a promover uma transformação na vida do aluno. "Esses programas, embora sejam desafiadores e tenham uma dinâmica que requer certo esforço de quem vai implementar, são muito benéficos", destaca Léo Bento. "É benéfico para as crianças que entram, para as famílias, porque isso dá uma expectativa de mudança na questão socioeconômica. É positivo para quem recebe esses estudantes, para quem convive com esses estudantes, porque vão passar a ter uma relação direta com pessoas que vivenciam outras realidades. É benéfico também para a sociedade, porque a gente acaba tendo pessoas que estão se tornando cidadãs nas escolas pelo país". O especialista compara as bolsas em colégios com o bem-sucedido programa de cotas em universidades, que contou com o pioneirismo da Universidade Estadual do Rio de Janeiro. "Se a gente pegar a UERJ, que começou o programa em 2002, pegar as universidades federais, até mesmo as pessoas que entraram através do ProUni, os estudos apontam que os alunos bolsistas acabam tendo um desempenho melhor do que os estudantes que entraram sem ser através das bolsas". Já em relação à experiência com os alunos em colégios, Léo percebeu que os bolsistas podem apresentar, num primeiro momento, maior dificuldade nas disciplinas primárias, como matemática e português, mas, com acompanhamento adequado, esses estudantes logo equiparam o nível educacional com os pagantes. Casos "isolados" De tempos em tempos, surgem casos de preconceito contra alunos bolsistas em colégios particulares na cidade de São Paulo. Em abril deste ano, a filha de 14 anos da atriz Samara Felippo foi vítima de racismo na escola de alto padrão Vera Cruz, na Zona Oeste da capital. Duas alunas do 9° ano pegaram um caderno da garota, que é negra, arrancaram as folhas e escreveram uma ofensa racista em uma das páginas. Na sequência, o caderno foi devolvido aos achados e perdidos. No final de 2023, a mãe de um adolescente de 15 anos denunciou o colégio Ábaco, na Zona Oeste, por se omitir diante de casos de racismo sofridos pelo filho. A mulher conta que o adolescente estava em sala de aula quando outro aluno apontou para a figura de um macaco e disse que era o garoto. Em outra ocasião, durante uma aula de história, o mesmo menino, de 13 anos, chamou a vítima de "escravo" e "preto adotado". Em 2022, reportagem da Ponte Jornalismo revelou que pais de alunos e ex-alunos do Colégio São Domingos, na Zona Oeste, disseram que o diretor da instituição "sempre teve uma postura de negação em relação a casos de racismo dentro ambiente escolar e que nunca se mostrou favorável para que ações de combate à intolerância racial fossem implementadas na instituição". Ele foi demitido em 2023. No mesmo ano, organizações da sociedade civil, incluindo a ONG Educafro, acusaram o colégio Porto Seguro, na Zona Sul, de segregar alunos bolsistas e pagantes em prédios diferentes e pediram indenização de R$ 15 milhões. "Antes, o colégio alemão Porto Seguro tinha os pobres negros e os pobres brancos nas mesmas salas com os ricos. Em um certo momento, ela importou dos Estados Unidos essa doutrina do 'separado, mas iguais'. Construiu um outro prédio e lá colocou todos os bolsistas negros e brancos e gerou uma qualidade inferior [de ensino]. Esses alunos não têm direitos iguais, não podem frequentar piscina", relatou Frei Davi, diretor-executivo da Educafro, à GloboNews. Para o especialista em relações raciais Léo Bento, não basta ampliar a diversidade por meio das bolsas, é necessário se planejar para realizar a inclusão. "As escolas precisam parar imediatamente de tratar os estudantes bolsistas numa relação de gratidão, que eles precisam ter uma gratidão por ter a bolsa. Essas distinções ferem a autoestima dessas crianças. Precisa ter um olhar que seja de equidade, tratar todos os estudantes de forma que eles estejam num mesmo ambiente de forma equitativa", apontou. Racismo na escola: acusados podem ser expulsos? Histórico de Versões O que fazer em casos de agressão? Não existe uma lei específica que pode ser aplicada quando casos de racismo ou homofobia ocorrem no ambiente escolar. Nesses casos, segundo Elisa Cruz, defensora pública e professora da FGV Rio, podem ser usados o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB). A partir do momento em que esses direitos são desrespeitados e a agressão acontece na escola, o primeiro mecanismo de defesa deve ser da própria escola. “A administração escolar precisa entender o que está acontecendo e agir rapidamente para recompor o ambiente saudável para todos os alunos", aponta Ana Paula Siqueira, doutoranda em direito pela PUC-SP. Neste caso, uma medida de precaução imediata pode ser a suspensão do estudante ou do grupo discente apontado como infrator. No entanto, essa não deve ser a única atitude tomada pela escola. Ana Paula defende que é dever da escola investigar o caso e definir as medidas disciplinares que serão tomadas. Durante a investigação, deve ser garantido aos suspeitos da infração o direito de se explicar. No processo de decisão, segundo Elisa Cruz, a escola precisa refletir sobre três perguntas fundamentais: O que foi praticado viola o código ético da própria escola? Favorece o processo educacional das pessoas envolvidas e do conjunto de alunos manter todo mundo na mesma escola? Como a vítima vai se sentir se tiver que conviver com seus agressores? As respostas para essas perguntas podem nortear a decisão da escola, que pode ser tanto pela reintegração dos alunos suspensos quanto pela expulsão dos infratores. Racismo x bullying A educadora parental Lua Barros aponta que bullying e racismo são coisas profundamente diferentes, embora se manifestem de forma parecida. "O que motiva, o que encoraja uma pessoa a humilhar, xingar e expor é essa ideia de superioridade. Quando acontece na escola, é tão difícil encarar que a gente utiliza o artifício da narrativa, da retórica, e conta a história de uma outra forma para não ficar tão feio assim", afirma. "Falar de bullying é mais fácil e, frequentemente, a gente diz que é coisa de criança. Já racismo é crime. As escolas precisam assumir que não sabem lidar com essa situação. Precisam se letrar e precisam aprender a se responsabilizar". "Esse cenário só muda se a gente se implicar no processo, se a gente nomear da forma correta, se a gente tirar nosso racismo debaixo do tapete e trazer para a mesa do jantar", destaca. Em definição, bullying é um tipo de violência que é praticado no ambiente escolar (da educação básica ao pós-doutorado), em clubes ou em agremiações recreativas. Bullying não é o termo usado para definir a agressão física ou psicológica, xingamento, violência, ameaça ou exclusão contínuos que acontecem no trabalho. Já o racismo é uma agressão (física e/ou psicológica, recorrente ou não) com base em características de cor, raça ou etnia da vítima, que pode acontecer em qualquer lugar e ser praticado por qualquer pessoa. Desde janeiro deste ano, a Lei 14.811 acrescentou ao Código Penal o crime de bullying e cyberbullying (quando o crime acontece no ambiente virtual), que prevê penas de reclusão de 2 a 4 anos, e multa. Já o racismo é um crime inafiançável previsto pela Lei 7.716, de 1989, e prevê pena de reclusão de 2 a 5 anos e multa. Como os colégios lidam com o preconceito? O g1 entrou em contato com alguns colégios de elite da capital que oferecem bolsa e perguntou como eles lidam com a diversidade e o que fazem em casos de preconceito no ambiente escolar. Os colégios Vera Cruz, Porto Seguro e Avenues não compartilharam detalhes sobre o tema e não informaram se promovem algum tipo programa de permanência a alunos bolsistas. Também não disseram se a matriz curricular aborda diferenças raciais e de gênero e se há punições previstas em casos de bullying, racismo e homofobia, por exemplo. Abaixo, confira as respostas dos colégios que retornaram o contato. Colégio Bandeirantes O Colégio Bandeirantes tem um total de 2,8 mil alunos nos ensinos fundamental e médio, sendo 130 bolsistas. Como funciona o programa de bolsas? "As bolsas são oferecidas a partir das parcerias com institutos sociais - ISMART, SOL e ALCANCE. Nosso programa de bolsas tem como objetivo abrir portas para alunos talentosos que enfrentam desafios financeiros, oferecendo a eles uma oportunidade única de acesso à educação de qualidade. O processo de seleção é criterioso, considerando tanto o desempenho acadêmico quanto a situação socioeconômica dos candidatos. Ao ingressarem no colégio, esses alunos são acolhidos e integrados em um ambiente que valoriza e potencializa suas capacidades. Trabalhamos para emponderá-los em sua trajetória acadêmica, oferecendo não apenas apoio pedagógico, mas também um espaço onde ex-bolsistas, já bem-sucedidos no mercado, compartilham suas experiências em rodas de conversa. Esses encontros são fundamentais para inspirar e motivar nossos bolsistas atuais, mostrando que, com dedicação e apoio, eles podem alcançar grandes conquistas". O colégio oferece algum programa de permanência? "Sim, nosso compromisso vai além de apenas oferecer a bolsa de estudos. Temos um programa abrangente de permanência que busca garantir o sucesso contínuo dos alunos bolsistas ao longo de sua jornada escolar. Esse programa inclui orientação educacional, que acompanha o desenvolvimento acadêmico dos alunos. Além disso, promovemos atividades de integração, como grupos de estudo e projetos colaborativos, que incentivam a participação ativa na vida escolar. No início do ano letivo, realizamos um processo de integração que envolve tanto os estudantes bolsistas quanto os não bolsistas. Durante essa integração, todos os alunos são acolhidos de forma equânime, com atividades que promovem a inclusão e o sentimento de pertencimento. Não há qualquer diferenciação no tratamento dispensado a esses alunos; nosso foco é garantir que todos se sintam valorizados e apoiados". De que forma o colégio aborda as diferenças? Isso está presente no currículo? "A diversidade e a inclusão são valores centrais na nossa escola, e abordamos essas questões de forma integrada ao currículo. Em nossas aulas de convivência, os alunos têm a oportunidade de discutir e refletir sobre temas como equidade social, racial e de gênero, além de aprender sobre os direitos humanos e a importância do respeito às diferenças. Desde 1992, o colégio possui em seu currículo um trabalho sistemático de convivência que atua em diferentes frentes. Entre elas, destacam-se as aulas semanais de Convivência Positiva para todos os alunos, que são planejadas com o objetivo de promover um ambiente de respeito e inclusão. Outra frente importante são as ações diretas, como o Método de Preocupação Compartilhada, que consiste em intervir de forma específica quando há uma suspeita de intimidação sistemática (bullying). A escola também oferece espaços de protagonismo para os alunos, que desempenham um papel fundamental na construção de um ambiente seguro e acolhedor. Entre esses espaços, destacam-se as Equipes de Ajuda, a Comissão de Apoio Racional e Emocional (C.A.R.E.) e o Bandiversidade, que são grupos formados para promover a inclusão, o apoio emocional e a diversidade dentro do colégio. Desenvolvemos projetos interdisciplinares que incentivam a valorização da diversidade e promovem a empatia entre os estudantes. Além disso, realizamos palestras, rodas de conversa e workshops com especialistas e líderes comunitários que abordam essas questões de forma prática e inspiradora. Nosso objetivo é formar cidadãos conscientes, capazes de reconhecer e celebrar a diversidade em todas as suas formas". Há algum tipo de punição em caso de bullying, racismo e homofobia, por exemplo? "Temos protocolos bem definidos que incluem desde a investigação minuciosa dos incidentes até a aplicação de medidas disciplinares, que podem variar de advertências formais a suspensões, dependendo da gravidade do caso. Mais do que punir, nosso foco é educar e transformar. Por isso, implementamos programas de conscientização e reparação, onde os envolvidos participam de atividades reflexivas e de mediação, visando restaurar o ambiente de respeito e confiança. Acreditamos que essas situações, embora difíceis, podem ser transformadas em oportunidades de aprendizado e crescimento para todos os envolvidos". Colégio São Domingos O Colégio São Domingos tem um total de 933 alunos nos ensinos infantil, fundamental e médio, sendo 76 bolsistas. Como funciona o programa de bolsas? "Atualmente, o Colégio São Domingos conta com os seguintes programas de concessão de bolsas de estudos: A concessão de Bolsa Integral via Convenção Coletiva: segundo este critério, todos os funcionários do colégio, independentemente de suas funções (administrativas, educativas, executivas, operacionais, técnicas etc.) têm direito a até duas bolsas integrais (100% da anuidade escolar) para seus dependentes. A diferença específica de nossa política institucional em relação aos termos da Convenção é que, além da concessão da bolsa integral, os filhos de nossos funcionários têm também a prioridade da vaga. A concessão de Bolsa Integral via Edital de Políticas Afirmativas: por meio deste Edital, o Colégio São Domingos concede bolsas de estudo de 100% (cem por cento na anuidade escolar) para crianças e adolescentes que sejam negros (pessoas autodeclaradas pretas e pardas) e indígenas. Em 2024, foram oferecidas 4 (quatro) bolsas a estudantes com as características étnico-raciais acima descritas, com entradas nos distintos segmentos da escola: Educação Infantil, Ensino Fundamental 1 e Ensino Fundamental 2 e Ensino Médio. Para estudantes da Educação Infantil e Ensino Fundamental as bolsas foram também concedidas para as atividades do Semi Integral (Usina de Aprendizagens), que acontecem no contraturno escolar. A concessão de Bolsa Integral por meio de convênio institucional com a Fundação Cultural São Paulo. A concessão de descontos (Bolsas Parciais) por meio de outros convênios institucionais. A concessão de descontos (Bolsas Parciais) por um período pré-determinado para familiares da comunidade escolar com dificuldades financeiras pontuais". O colégio oferece algum programa de permanência? "A fim de garantir a permanência dos/as estudantes contemplados/as pelas Bolsas, Edital de Políticas Afirmativas prevê também o compromisso da instituição com as seguintes ações: A) Auxílio alimentação para estudantes do período Semi-Integral de até 100%; B) Auxílio alimentação para estudantes, contempladas(os) neste edital, nas atividades do contraturno escolar; C) Material Escolar completo: kit papelaria, material didático, livros paradidáticos específicos de cada série; D) Kit de uniforme escolar; E) Auxílio financeiro para transporte; F) Auxílio financeiro para estudos de meio. Para favorecer essas ações, o Colégio São Domingos criou o Fundo para a Equidade Racial (FER). O FER é uma ação de caráter político-pedagógico que afirma a corresponsabilidade da comunidade escolar na garantia de recursos econômicos para a permanência de estudantes negras(os) e indígenas, por meio de doações voluntárias. O Edital de Bolsas, assim como Fundo para a Equidade Racial são resultantes das ações do Comitê de Políticas Antirracistas do Colégio São Domingos". De que forma o colégio aborda as diferenças? Isso está presente no currículo? "A afirmação das diferenças em sua plenitude é um dos princípios que estruturam e orientam a nossa concepção de educação e nossas práticas pedagógicas. Na perspectiva curricular, as diferenças não são abordadas de modo temático, como conteúdo disciplinar específico, mas de forma estrutural, uma vez que a afirmação da diversidade compõe o nosso ethos escolar e atravessa o nosso modo de conceber os projetos de investigação e estudo. Assim, elas (as diferenças) estão presentes não apenas nas abordagens acadêmicas das diversas áreas de conhecimento, mas também na dinâmica das relações sociais que o colégio promove e media. Em 2024, iniciamos um diagnóstico institucional do nosso currículo escolar desde uma perspectiva antirracista, utilizando como referência os Indicadores da Qualidade na Educação – Relações Raciais na Escola (Ação Educativa, 2023). Este é um projeto que perpassa todos os segmentos e deve se estender até o próximo ano. Informações específicas sobre essa investigação diagnóstica estão disponíveis no nosso site: currículo e educação antirracista. Além das ações do Comitê e dos projetos de investigação curriculares, o colégio promove regularmente uma série de encontros com a comunidade escolar para debater temas contemporâneos que tenham impactos significativos no nosso modo de pensar e fazer educação". Há algum tipo de punição em caso de bullying, racismo e homofobia, por exemplo? "Embora a palavra punição tenha um sentido bastante específico no contexto pedagógico e na legislação escolar, o campo semântico que ela abarca traz reverberações práticas e conceituais que não favorecem a compreensão de nossos modos de ação educativa no enfrentamento de casos de bullying, racismo e homofobia. A escola é, por excelência, um espaço de formação e, nessa perspectiva, toda ação empreendida nesse espaço precisa ter uma finalidade pedagógica (e não penal, stricto sensu). A interdição é parte essencial do processo educativo. Mas para ser efetiva, ela deve ser concebida e realizada com um propósito pedagógico, caso contrário, ela permanece apenas no campo simbólico da punição/penalização e não da formação. Entendemos que circunstâncias específicas exigem um gesto simbólico de interdição. A interdição, por sua vez, nunca é pensada de forma isolada, como punição automática, mas integra uma ampla cadeia de procedimentos que prevê o reconhecimento, a reparação e o monitoramento de casos de racismo, bullying e homofobia. Por isso, decisões dessa natureza são sempre tomadas de forma dialogada e refletida para que os implicados as recebam como um gesto concreto e afetivo de comprometimento ético e pedagógico com a sua formação, seja como indivíduo, seja como comunidade". * Colaboraram Cíntia Acayaba e Norma Odara